segunda-feira, 29 de junho de 2009

Formação

Formação

Não ignoro que a principal incumbência assinada ao ensino em geral, e
em especial ao universitário, é a formação. A universidade prepara o
aluno para a vida, transmite-lhe os saberes adequados ao exercício
cabal de uma profissão escolhida no conjunto de necessidades
manifestada pela sociedade, escolha essa que se alguma vez foi guiada
pelos imperativos da vocação, é com mais frequência resultante dos
progressos científicos e tecnológicos, e também de interessadas
demandas empresariais. Em qualquer caso, a universidade terá sempre
motivos para pensar que cumpriu o seu papel ao entregar à sociedade
jovens preparados para receberem e integrarem no seu acervo de
conhecimentos as lições que ainda lhe faltam, isto é, as da
experiência, madre de todas as coisas humanas. Ora, se a universidade,
como era seu dever, formou, e se a chamada formação contínua fará o
resto, a pergunta é inevitável: ?Onde está o problema?? O problema
está em que me limitei a falar da formação necessária ao desempenho de
uma profissão, deixando de lado outra formação, a do indivíduo, da
pessoa, do cidadão, essa trindade terrestre, três em um corpo só. É
tempo de tocar o delicado assunto. Qualquer acção formativa pressupõe,
naturalmente, um objecto e um objectivo. O objecto é a pessoa a quem
se pretende formar, o objectivo está na natureza e na finalidade da
formação. Uma formação literária, por exemplo, não apresentará mais
dúvidas que as que resultarem dos métodos de ensino e da maior ou
menor capacidade de recepção do educando. A questão, porém, mudará
radicalmente de figura sempre que se trate de formar pessoas, sempre
que se pretenda incutir no que designei por ?objecto?, não apenas as
matérias disciplinares que constituem o curso, mas um complexo de
valores éticos e relacionais teóricos e práticos indispensáveis à
actividade profissional. No entanto, formar pessoas não é, por si só,
um aval tranquilizador. Uma educação que propugnasse ideias de
superioridade racial ou biológica estaria a perverter a própria noção
de valor, pondo o negativo no lugar do positivo, substituindo os
ideais solidários do respeito humano pela intolerância e pela
xenofobia. Não faltam exemplos na história antiga e recente da
humanidade.
Aonde pretendo chegar com este arrazoado? À universidade. E também à
democracia. À universidade porque ela deverá ser tanto uma instituição
dispensadora de conhecimentos como o lugar por excelência de formação
do cidadão, da pessoa educada nos valores da solidariedade humana e do
respeito pela paz, educada para a liberdade e para a crítica, para o
debate responsável das ideias. Argumentar-se-á que uma parte
importante dessa tarefa pertence à família como célula básica da
sociedade, porém, como sabemos, a instituição familiar atravessa uma
crise de identidade que a tornou impotente perante as transformações
de todo o tipo que caracterizam a nossa época. A família, salvo
excepções, tende a adormecer a consciência, ao passo que a
universidade, sendo lugar de pluralidades e encontros, reúne todas as
condições para suscitar uma aprendizagem prática e efectiva dos mais
amplos valores democráticos, principiando pelo que me parece
fundamental: o questionamento da própria democracia. Há que procurar o
modo de reinventá-la, de arrancá-la ao imobilismo da rotina e da
descrença, bem ajudadas, uma e outra, pelos poderes económico e
político a quem convém manter a decorativa fachada do edifício
democrático, mas que nos têm impedido de verificar se por trás dela
algo subsiste ainda. Em minha opinião, o que resta é, quase sempre,
usado muito mais para armar de eficácia as mentiras que para defender
as verdades. O que chamamos democracia começa a assemelhar-se
tristemente ao pano solene que cobre a urna onde já está apodrecendo o
cadáver. Reinventemos, pois, a democracia antes que seja demasiado
tarde. E que a universidade nos ajude. Quererá ela? Poderá ela?

José Saramago

Um comentário:

André Estrada disse...

Segue uma matéria do Estadão.

Eles são policiais e alunos da USP
Grupo que estuda na FFLCH conta como analisa a greve e os confrontos que envolveram seus colegas no câmpus.